O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (25/11) pela TV
Brasil e pela TV Cultura discutiu a cobertura dos meios de
comunicação sobre o acordo firmado no dia 13 de novembro entre o
governo brasileiro e a Santa Sé, assinado durante a recente visita do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Vaticano. A mídia ofereceu
pouco espaço ao acordo, que pode ferir o princípio do Estado laico. O
tratado, que confere formato jurídico às relações entre o Executivo
Brasileiro e a Igreja Católica, tem pontos polêmicos.
O acordo prevê, por exemplo, o ensino religioso nas escolas públicas,
com presença facultativa, e a possibilidade da anulação do casamento
civil no caso o matrimônio religioso ser desfeito. Participaram do
debate ao vivo, no estúdio do Rio de Janeiro, o reverendo Guilhermino
Silva da Cunha, pastor da Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro, e
a pesquisadora e professora da USP Roseli Fischmann. Em Brasília,
participou o representante da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), Hugo Sarubbi Cysneiros.
No editorial que inicia o programa, o jornalista Alberto Dines
classificou a atuação da mídia como "embargo noticioso ou
autocensura". O acordo foi mantido sob sigilo porque infringe o
espírito e a letra da Constituição Federal. Além de os jornais não
terem dado destaque à assinatura do acordo, a mídia eletrônica
evangélica não protestou. Na avaliação de Dines, os grupos
evangélicos têm sido privilegiados pelo governo de outras
formas. "Significa que no lugar de seguir a Constituição e
estabelecer completa separação entre estado e religião, o Brasil
inventou uma forma original de administrar o conflito religioso,
oferecendo vantagens às confissões religiosas mais poderosas",
avaliou.
"E como ficam os secularistas e agnósticos que acreditam que um
estado democrático deve ser obrigatoriamente laico? E as outras
confissões religiosas afro-brasileiras, como o candomblé, não
deveriam entrar no bolo de privilégios? Estamos na contramão do mundo
desenvolvido e nossa imprensa, esquecida dos três séculos de censura
absoluta antes de ser autorizada a funcionar, teve um surto de
saudosismo e voltou a experimentar as delícias da autocensura",
criticou o jornalista.
Na reportagem exibida antes do debate ao vivo a repórter especial da
Folha de S.Paulo, Elvira Lobato, estudiosa das questões que envolvem
as concessões de radiodifusão no Brasil, explicou que o Código
Brasileiro de Telecomunicações é da década de 1960. A norma não
permite que denominações religiosas detenham concessões canais de
rádio e TV mas, na prática, grande parte das igrejas conseguem burlar
a lei. Algumas não são concessionárias, mas arrendam o espaço em
emissoras privadas o que "para efeito de mercado dá no mesmo" porque
levam a mensagem ao fiel. Já o fenômeno do altar eletrônico, que vêm
crescendo continuamente, passou a ser uma importante fonte de renda
para as emissoras privadas.
Igreja Católica, um tabu para a imprensa
No debate ao vivo, Roseli Fischmann comentou que a imprensa tem
demonstrado dificuldade de tratar do acordo. A professora relembrou
que em maio de 2005, durante a visita do Papa Bento XVI, mesmo com o
posicionamento crítico em relação ao tema, publicando forte editorial
em prol do estado laico e contra o sigilo que vinha cercando a
negociação, a Folha de S.Paulo abriu espaço para a Igreja Católica
manifestar-se a cada nova polêmica, como também os defensores do
estado laico, o que favoreceu o debate no jornal e na sociedade.
Roseli comentou que embora fossem poucos os veículosa que tivessem se
envolvido nesses momentos, imprensa trouxe importantes vitórias para
a cidadania ao mobilizar a sociedade na discussão da implantação do
feriado nacional por conta da canonização de frei Galvão, que foi
rejeitado pela Câmara dos Deputados depois de aprovado no Senado,
exatamente por esse debate público; e sobre um projeto ligado ao
ensino religioso nas escolas paulistas, vetado pelo governador José
Serra, depois de aprovado na Assembléia Legislativa de Sâo Paulo.
Dines pediu ao representante da CNBB esclarecer se a Constituição
brasileira é secularista. Hugo Sarubbi Cysneiros comentou que a Carta
Magna invoca Deus em seu preâmbulo, mas é laica. O Estado não é ateu
nem professa uma religião específica. O advogado ressaltou que o
projeto de acordo entre a Santa Sé, como pessoa jurídica de Direito
Internacional Público, e o Estado brasileiro não privilegiou a Igreja
Católica, mas respaldou o estatuto jurídico desta religião.
O Estado brasileiro vê no laicismo positivo "um caminho" e reconhece
na religião e na crença "algo que faz parte do ser humano" e que pode
ser exercitado pelos cidadãos como um Direito. Dines ponderou que a
citação a Deus no preâmbulo da Constituição não chegou a ser uma
profissão de fé religiosa, foi apenas uma intervenção pessoal do
então presidente José Sarney. Não comprometia o caráter secular que
previa a separação entre o Estado e as crenças religiosas.
O acordo é constitucional?
O reverendo Guilhermino Silva da Cunha acredita que a separação entre
Igreja e Estado é "absolutamente saudável" e preserva a liberdade
religiosa. De acordo com o religioso, esta separação foi preconizada
pelo próprio Jesus Cristo na Bíblia, ao dizer, por exemplo, "meu
reino não é deste mundo" entre outras passagens. O pastor afirmou que
os dois Estados que celebraram o acordo envolvendo apenas uma
expressão religiosa atacam frontalmente a Constituição no Artigo 19
porque este proíbe alianças entre o governo e cultos religiosos ou
igrejas. "A celebração do acordo fere nosso diploma legal maior. Não
apenas agride as expressões religiosas, como também fere a
Constituição", criticou. O reverendo tem esperanças de que o
Congresso Nacional não referende o acordo.
"Mesmo que existisse um único cidadão de outra religião ou ateu ele
teria todo o Direito de exercer sua escolha", disse Roseli Fischmann.
O Estado laico tem o dever de preservar o Direito de todos
independente do número de pessoas que optem por determinada crença. A
professora frisou que o Brasil apresenta um grande pluralismo
religioso e que, por isto, é inaceitável um acordo internacional com
uma única religião. Neste caso, as demais estão sendo preteridas. "O
Estado precisa proteger para que todos se sintam respeitados",
avaliou.
Dines comentou que a Santa Sé queria "abafar" o acordo sem
a "oxigenação de uma sociedade democrática". O representante da CNBB
não concorda que a sociedade tenha sido ludibriada nem que a Igreja
seja manipuladora. "O sigilo não foi a bandeira, não foi o meio nem o
fim do tratado". O advogado considera que falar em sigilo de um
tratado internacional em um país com as características do Brasil é
um contra-senso porque a sociedade pode examinar o teor do acordo
quando este é submetido ao Poder Legislativo. Cysneiros destacou que
a Constituição Federal fala de Deus em outros artigos, não só no
preâmbulo.
O silêncio da mídia como sintoma
O advogado da CNBB disse que o tratado não foi firmado com a Igreja
Católica e sim com a Santa Sé, que é um Estado soberano. Se, por
questões históricas, as outras religiões não têm personalidade de
Direito Internacional Privado, não há como estas celebrarem tratados
internacionais. Para Cysneros não há privilégio da Igreja Católica em
detrimento de outras religiões e o acordo não é inconstitucional.
O tratado é claro e dá estatutos à Igreja Católica no Brasil partindo
de dois princípios: o respeito à Ordem Constitucional e ao Estado
brasileiro e a isonomia entre todas as entidades de igual natureza.
Dines argumentou que a Santa Sé é um Estado soberano, mas que é
teocrático e funciona com regras específicas. O silêncio da mídia é
conivente na opinião do reverendo Guilhermino Silva da Cunha, pastor
da Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro. "Quando acontece o
silêncio significa que há algum entendimento ou alguma coisa
diferente e estranha", avaliou.
Um telespectador perguntou a Roseli Fishmann sobre o ensino religioso
nas escolas. A professora explicou que muitas vezes confunde-se o
papel das instituições. Principalmente em tempos de violência, quando
se considera que o ensino de religião pode combater a criminalidade.
A questão da religião é vinculada à consciência de cada indivíduo. Já
a escola deve preparar as crianças para respeitar os indivíduos como
cidadãos livres e iguais sem precisar recorrer a qualquer figura
sobrenatural.
A questão das concessões de rádio e TV
Para o reverendo Guilhermino Silva da Cunha, a presença das demais
igrejas na mídia não é diferente da presença da Igreja Católica. O
pastor não é contra a entrada das igrejas na mídia televisiva, mas
reprova o excesso. Como o telespectador tem o poder de mudar de
canal, o grande número de programas religiosos não chega a ser "uma
invasão". O pastor ressaltou que todas as igrejas pagam altos valores
tanto para alugar tempo nos canais privados quanto para manter uma
concessão. Na visão do reverendo, a existência de um canal de
televisão que ganhe força e vire uma rede em todo o país cria um
contra-ponto ao monopólio da comunicação, que é "um desastre".
Dines pediu a opinião de Roseli Fischmann sobre o "gerenciamento de
privilégios" no Brasil. A professora ressaltou a laicidade como o
fundamento da democracia no país: "Não existe democracia se as
pessoas não estiverem todas igualadas". As minorias religiosas são
uma das faces visíveis do pluralismo, que é essencial para a
democracia. O Estado não pode ser nem ausente nem omisso para as
minorias "não se encolherem e deixarem o campo público". Se um
determinado grupo é privilegiado, as minorias tendem a se retrair.
Perfil dos convidados
Hugo Sarubbi Cysneiros é advogado da Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB). É professor das disciplinas de Sistemas de Direito
Comparados e de Direito Internacional Público do UniCeub/DF.
Roseli Fischmann é pesquisadora e professora, coordena a área de
Filosofia e Educação da Pós-Graduação em Educação da USP e o Grupo de
Pesquisa Discriminação, Preconceito, Estigma da universidade.
Integrou a Comissão Especial sobre Ensino Religioso do Estado de São
Paulo.
Rev. Guilhermino Silva da Cunha é pastor da Catedral Presbiteriana do
Rio de Janeiro. Doutor em Ministério pelo Reformed Theological
Seminary (Estados Unidos) e Doutor Honoris Causa pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Foi presidente do Supremo Concílio da Igreja
Presbiteriana do Brasil.
***
Barriga coletiva ou autocensura?
Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV
nº 487, no ar em 25/11/2008
O que é um "furo" no jargão jornalístico? É uma informação
exclusiva. "Barriga" é o contrário: quando um jornal ou jornalista
deixa de dar ou deturpa uma notícia. Não existe um termo específico
para uma situação insólita, a barriga coletiva, quando o conjunto de
veículos esconde uma informação.
Esse embargo noticioso ou autocensura aconteceu há pouco, em 12 e 13
de novembro, quando o presidente Lula foi a Roma assinar um acordo
com o Vaticano. Como esta concordata infringe o espírito e a letra da
carta magna, governo e mídia acharam perfeitamente natural manter
este acordo sob sigilo.
E como se explica a ausência de protestos da mídia eletrônica
evangélica? Simplesmente porque a mídia eletrônica evangélica tem
sido privilegiada pelo governo de outras formas. Significa que no
lugar de seguir a constituição e estabelecer completa separação entre
estado e religião, o Brasil inventou uma forma original de
administrar o conflito religioso, oferecendo vantagens às confissões
religiosas mais poderosas.
E como ficam os secularistas e agnósticos que acreditam que um estado
democrático deve ser obrigatoriamente laico? E as outras confissões
religiosas afro-brasileiras, como o Candomblé, não deveriam entrar no
bolo de privilégios?
Estamos na contramão do mundo desenvolvido e nossa imprensa,
esquecida dos três séculos de censura absoluta antes de ser
autorizada a funcionar, teve um surto de saudosismo e voltou a
experimentar as delícias da autocensura.
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