segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

MÍDIA SE CALA SOBRE ACORDO COM O VATICANO

Por Lilia Diniz em 26/11/2008


O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (25/11) pela TV 
Brasil e pela TV Cultura discutiu a cobertura dos meios de 
comunicação sobre o acordo firmado no dia 13 de novembro entre o 
governo brasileiro e a Santa Sé, assinado durante a recente visita do 
presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Vaticano. A mídia ofereceu 
pouco espaço ao acordo, que pode ferir o princípio do Estado laico. O 
tratado, que confere formato jurídico às relações entre o Executivo 
Brasileiro e a Igreja Católica, tem pontos polêmicos. 

O acordo prevê, por exemplo, o ensino religioso nas escolas públicas, 
com presença facultativa, e a possibilidade da anulação do casamento 
civil no caso o matrimônio religioso ser desfeito. Participaram do 
debate ao vivo, no estúdio do Rio de Janeiro, o reverendo Guilhermino 
Silva da Cunha, pastor da Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro, e 
a pesquisadora e professora da USP Roseli Fischmann. Em Brasília, 
participou o representante da Conferência Nacional dos Bispos do 
Brasil (CNBB), Hugo Sarubbi Cysneiros. 

No editorial que inicia o programa, o jornalista Alberto Dines 
classificou a atuação da mídia como "embargo noticioso ou 
autocensura". O acordo foi mantido sob sigilo porque infringe o 
espírito e a letra da Constituição Federal. Além de os jornais não 
terem dado destaque à assinatura do acordo, a mídia eletrônica 
evangélica não protestou. Na avaliação de Dines, os grupos 
evangélicos têm sido privilegiados pelo governo de outras 
formas. "Significa que no lugar de seguir a Constituição e 
estabelecer completa separação entre estado e religião, o Brasil 
inventou uma forma original de administrar o conflito religioso, 
oferecendo vantagens às confissões religiosas mais poderosas", 
avaliou. 

"E como ficam os secularistas e agnósticos que acreditam que um 
estado democrático deve ser obrigatoriamente laico? E as outras 
confissões religiosas afro-brasileiras, como o candomblé, não 
deveriam entrar no bolo de privilégios? Estamos na contramão do mundo 
desenvolvido e nossa imprensa, esquecida dos três séculos de censura 
absoluta antes de ser autorizada a funcionar, teve um surto de 
saudosismo e voltou a experimentar as delícias da autocensura", 
criticou o jornalista. 

Na reportagem exibida antes do debate ao vivo a repórter especial da 
Folha de S.Paulo, Elvira Lobato, estudiosa das questões que envolvem 
as concessões de radiodifusão no Brasil, explicou que o Código 
Brasileiro de Telecomunicações é da década de 1960. A norma não 
permite que denominações religiosas detenham concessões canais de 
rádio e TV mas, na prática, grande parte das igrejas conseguem burlar 
a lei. Algumas não são concessionárias, mas arrendam o espaço em 
emissoras privadas o que "para efeito de mercado dá no mesmo" porque 
levam a mensagem ao fiel. Já o fenômeno do altar eletrônico, que vêm 
crescendo continuamente, passou a ser uma importante fonte de renda 
para as emissoras privadas. 

Igreja Católica, um tabu para a imprensa

No debate ao vivo, Roseli Fischmann comentou que a imprensa tem 
demonstrado dificuldade de tratar do acordo. A professora relembrou 
que em maio de 2005, durante a visita do Papa Bento XVI, mesmo com o 
posicionamento crítico em relação ao tema, publicando forte editorial 
em prol do estado laico e contra o sigilo que vinha cercando a 
negociação, a Folha de S.Paulo abriu espaço para a Igreja Católica 
manifestar-se a cada nova polêmica, como também os defensores do 
estado laico, o que favoreceu o debate no jornal e na sociedade. 
Roseli comentou que embora fossem poucos os veículosa que tivessem se 
envolvido nesses momentos, imprensa trouxe importantes vitórias para 
a cidadania ao mobilizar a sociedade na discussão da implantação do 
feriado nacional por conta da canonização de frei Galvão, que foi 
rejeitado pela Câmara dos Deputados depois de aprovado no Senado, 
exatamente por esse debate público; e sobre um projeto ligado ao 
ensino religioso nas escolas paulistas, vetado pelo governador José 
Serra, depois de aprovado na Assembléia Legislativa de Sâo Paulo. 

Dines pediu ao representante da CNBB esclarecer se a Constituição 
brasileira é secularista. Hugo Sarubbi Cysneiros comentou que a Carta 
Magna invoca Deus em seu preâmbulo, mas é laica. O Estado não é ateu 
nem professa uma religião específica. O advogado ressaltou que o 
projeto de acordo entre a Santa Sé, como pessoa jurídica de Direito 
Internacional Público, e o Estado brasileiro não privilegiou a Igreja 
Católica, mas respaldou o estatuto jurídico desta religião. 

O Estado brasileiro vê no laicismo positivo "um caminho" e reconhece 
na religião e na crença "algo que faz parte do ser humano" e que pode 
ser exercitado pelos cidadãos como um Direito. Dines ponderou que a 
citação a Deus no preâmbulo da Constituição não chegou a ser uma 
profissão de fé religiosa, foi apenas uma intervenção pessoal do 
então presidente José Sarney. Não comprometia o caráter secular que 
previa a separação entre o Estado e as crenças religiosas. 

O acordo é constitucional?

O reverendo Guilhermino Silva da Cunha acredita que a separação entre 
Igreja e Estado é "absolutamente saudável" e preserva a liberdade 
religiosa. De acordo com o religioso, esta separação foi preconizada 
pelo próprio Jesus Cristo na Bíblia, ao dizer, por exemplo, "meu 
reino não é deste mundo" entre outras passagens. O pastor afirmou que 
os dois Estados que celebraram o acordo envolvendo apenas uma 
expressão religiosa atacam frontalmente a Constituição no Artigo 19 
porque este proíbe alianças entre o governo e cultos religiosos ou 
igrejas. "A celebração do acordo fere nosso diploma legal maior. Não 
apenas agride as expressões religiosas, como também fere a 
Constituição", criticou. O reverendo tem esperanças de que o 
Congresso Nacional não referende o acordo. 

"Mesmo que existisse um único cidadão de outra religião ou ateu ele 
teria todo o Direito de exercer sua escolha", disse Roseli Fischmann. 
O Estado laico tem o dever de preservar o Direito de todos 
independente do número de pessoas que optem por determinada crença. A 
professora frisou que o Brasil apresenta um grande pluralismo 
religioso e que, por isto, é inaceitável um acordo internacional com 
uma única religião. Neste caso, as demais estão sendo preteridas. "O 
Estado precisa proteger para que todos se sintam respeitados", 
avaliou. 

Dines comentou que a Santa Sé queria "abafar" o acordo sem 
a "oxigenação de uma sociedade democrática". O representante da CNBB 
não concorda que a sociedade tenha sido ludibriada nem que a Igreja 
seja manipuladora. "O sigilo não foi a bandeira, não foi o meio nem o 
fim do tratado". O advogado considera que falar em sigilo de um 
tratado internacional em um país com as características do Brasil é 
um contra-senso porque a sociedade pode examinar o teor do acordo 
quando este é submetido ao Poder Legislativo. Cysneiros destacou que 
a Constituição Federal fala de Deus em outros artigos, não só no 
preâmbulo. 

O silêncio da mídia como sintoma

O advogado da CNBB disse que o tratado não foi firmado com a Igreja 
Católica e sim com a Santa Sé, que é um Estado soberano. Se, por 
questões históricas, as outras religiões não têm personalidade de 
Direito Internacional Privado, não há como estas celebrarem tratados 
internacionais. Para Cysneros não há privilégio da Igreja Católica em 
detrimento de outras religiões e o acordo não é inconstitucional. 

O tratado é claro e dá estatutos à Igreja Católica no Brasil partindo 
de dois princípios: o respeito à Ordem Constitucional e ao Estado 
brasileiro e a isonomia entre todas as entidades de igual natureza. 
Dines argumentou que a Santa Sé é um Estado soberano, mas que é 
teocrático e funciona com regras específicas. O silêncio da mídia é 
conivente na opinião do reverendo Guilhermino Silva da Cunha, pastor 
da Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro. "Quando acontece o 
silêncio significa que há algum entendimento ou alguma coisa 
diferente e estranha", avaliou. 

Um telespectador perguntou a Roseli Fishmann sobre o ensino religioso 
nas escolas. A professora explicou que muitas vezes confunde-se o 
papel das instituições. Principalmente em tempos de violência, quando 
se considera que o ensino de religião pode combater a criminalidade. 
A questão da religião é vinculada à consciência de cada indivíduo. Já 
a escola deve preparar as crianças para respeitar os indivíduos como 
cidadãos livres e iguais sem precisar recorrer a qualquer figura 
sobrenatural.

A questão das concessões de rádio e TV

Para o reverendo Guilhermino Silva da Cunha, a presença das demais 
igrejas na mídia não é diferente da presença da Igreja Católica. O 
pastor não é contra a entrada das igrejas na mídia televisiva, mas 
reprova o excesso. Como o telespectador tem o poder de mudar de 
canal, o grande número de programas religiosos não chega a ser "uma 
invasão". O pastor ressaltou que todas as igrejas pagam altos valores 
tanto para alugar tempo nos canais privados quanto para manter uma 
concessão. Na visão do reverendo, a existência de um canal de 
televisão que ganhe força e vire uma rede em todo o país cria um 
contra-ponto ao monopólio da comunicação, que é "um desastre".

Dines pediu a opinião de Roseli Fischmann sobre o "gerenciamento de 
privilégios" no Brasil. A professora ressaltou a laicidade como o 
fundamento da democracia no país: "Não existe democracia se as 
pessoas não estiverem todas igualadas". As minorias religiosas são 
uma das faces visíveis do pluralismo, que é essencial para a 
democracia. O Estado não pode ser nem ausente nem omisso para as 
minorias "não se encolherem e deixarem o campo público". Se um 
determinado grupo é privilegiado, as minorias tendem a se retrair. 

Perfil dos convidados

Hugo Sarubbi Cysneiros é advogado da Conferência Nacional dos Bispos 
do Brasil (CNBB). É professor das disciplinas de Sistemas de Direito 
Comparados e de Direito Internacional Público do UniCeub/DF.

Roseli Fischmann é pesquisadora e professora, coordena a área de 
Filosofia e Educação da Pós-Graduação em Educação da USP e o Grupo de 
Pesquisa Discriminação, Preconceito, Estigma da universidade. 
Integrou a Comissão Especial sobre Ensino Religioso do Estado de São 
Paulo. 

Rev. Guilhermino Silva da Cunha é pastor da Catedral Presbiteriana do 
Rio de Janeiro. Doutor em Ministério pelo Reformed Theological 
Seminary (Estados Unidos) e Doutor Honoris Causa pela Universidade 
Presbiteriana Mackenzie. Foi presidente do Supremo Concílio da Igreja 
Presbiteriana do Brasil.

***

Barriga coletiva ou autocensura?

Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV 
nº 487, no ar em 25/11/2008

O que é um "furo" no jargão jornalístico? É uma informação 
exclusiva. "Barriga" é o contrário: quando um jornal ou jornalista 
deixa de dar ou deturpa uma notícia. Não existe um termo específico 
para uma situação insólita, a barriga coletiva, quando o conjunto de 
veículos esconde uma informação.

Esse embargo noticioso ou autocensura aconteceu há pouco, em 12 e 13 
de novembro, quando o presidente Lula foi a Roma assinar um acordo 
com o Vaticano. Como esta concordata infringe o espírito e a letra da 
carta magna, governo e mídia acharam perfeitamente natural manter 
este acordo sob sigilo.

E como se explica a ausência de protestos da mídia eletrônica 
evangélica? Simplesmente porque a mídia eletrônica evangélica tem 
sido privilegiada pelo governo de outras formas. Significa que no 
lugar de seguir a constituição e estabelecer completa separação entre 
estado e religião, o Brasil inventou uma forma original de 
administrar o conflito religioso, oferecendo vantagens às confissões 
religiosas mais poderosas.

E como ficam os secularistas e agnósticos que acreditam que um estado 
democrático deve ser obrigatoriamente laico? E as outras confissões 
religiosas afro-brasileiras, como o Candomblé, não deveriam entrar no 
bolo de privilégios?

Estamos na contramão do mundo desenvolvido e nossa imprensa, 
esquecida dos três séculos de censura absoluta antes de ser 
autorizada a funcionar, teve um surto de saudosismo e voltou a 
experimentar as delícias da autocensura.

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