No Brasil para palestras, Douglas Futuyma faz balanço dos avanços no
estudo da evolução biológica
Carlos Orsi, do Estado de São Paulo
SÃO PAULO - Ciência e religião podem conviver, mas não devem se
misturar. Essa é a receita que o biólogo americano Douglas Futuyma
oferece para evitar conflitos como os que ocorrem nos EUA, em torno do
ensino da teoria da evolução em escolas públicas. Futuyma é um
veterano dessas batalhas, tendo sido presidente da Sociedade Americana
para o Estudo da Evolução e editor da revista científica especializada
Evolution. É autor, entre outros livros, de Science on Trial: The Case
for Evolution (Ciência em Julgamento: O Caso em Favor da Evolução),
sobre o embate entre o ensino da evolução e do criacionismo, e de
Biologia Evolutiva, uma das principais obras usadas no ensino da
evolução nos cursos universitários brasileiros de Biologia.
Futuyma está no Brasil nesta semana, para uma série de três palestras
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a convite do programa
de pós-graduação em Ecologia da instituição. A primeira delas, na
terça-feira, foi "A Biologia Evolutiva, 150 anos após a publicação da
Origem das Espécies". A desta quarta teve como assunto "Evolução e o
Ataque à Ciência", sobre o duelo com os criacionistas, e nesta quinta-
feira o tema é "A Evolução de Associações entre Insetos e Plantas
Hospedeiras".
A palestra de terça superlotou a sala de defesa de teses do Instituto
de Biologia da universidade, com estudantes e professores em pé, junto
às paredes e sentados nos corredores para ouvir o cientista fazer um
balanço dos avanços no estudo da evolução biológica ao longo do último
século, principalmente a partir da descoberta do código genético. "Os
genomas não fazem sentido sem a vinculação com a evolução, e hoje
também podemos estudar a influência dos genes na evolução das
espécies", disse ele à platéia. Antes de iniciar a palestra, Futuyma
falou à reportagem do estadao.com.br:
Como está a teoria da evolução hoje, 150 anos depois de sua formulação
inicial?
Mais forte que nunca. Gostaria de começar dizendo algo sobre a palavra
"teoria". Essa palavra é mal compreendida, nos EUA e, talvez, no
Brasil também. Para muita gente, teoria é algo como uma idéia, um
palpite. Em ciência, no entanto, usamos "teoria" de um modo diferente.
Físicos falam em teoria quântica, teoria atômica, e não estão fazendo
especulações vazias. Eles têm muita certeza daquilo que dizem. Em
ciência, "teoria" significa um corpo de explicações que dá conta de
uma ampla gama de observações, e forma um corpo de conhecimento muito
forte. Nos últimos 150 anos, a teoria da evolução cresceu e acumulou
evidências em seu favor. Por exemplo, no tempo de Darwin (Charles
Darwin, autor de "A Origem das Espécies", primeira obra a expor a
teoria da evolução, publicada em 1859) não sabíamos sobre DNA, sobre
genes, não sabíamos como as características passavam dos pais para
filhos. Agora, usamos DNA para entender melhor a evolução, e a
evolução para entender melhor o funcionamento dos genes. Outro
exemplo: Darwin sugeriu, em 1866, que humanos e chimpanzés vinham de
um ancestral comum e agora sabemos, graças ao DNA, que ele estava
certo, porque o DNA humano e dos chimpanzés coincide em mais de 90% .
Como o trabalho de Darwin se sustenta hoje? Muitas vezes, o fundador
de um novo ramo da ciência acaba superado pelo avanço da própria
ciência que ajudou a criar.
Comparado com outros fundadores, Darwin sobrevive muito bem. Claro que
ele não era perfeito, cometeu erros e havia muita coisa que,
simplesmente, não sabia. Mas é notável quantas das suas idéias, quanto
de seus "insights", foram validados. Por exemplo: ele teve problemas
em entender como insetos sociais, como abelhas e formigas, criam
comunidades onde a maioria dos indivíduos trabalha, mas não se
reproduz, já que a evolução prevê que os indivíduos que têm mais
sucesso reprodutivo devem acabar dominando a espécie. Isso parecia um
desafio à teoria da evolução. Ele teve a idéia de que alguns
indivíduos poderiam se sacrificar em favor de outros de parentesco
próximo, na mesma colônia. E hoje esta ainda é a principal explicação,
com muita evidência a seu favor. Claro, ele estava errado em algumas
coisas. Ele tentou criar uma teoria da hereditariedade que estava,
simplesmente, errada. Mas ninguém é perfeito.
Críticos da evolução costumam dizer que a teoria é um raciocínio
circular, já que afirma "a sobrevivência dos mais aptos", mas o único
jeito de saber quem é mais apto é esperando para ver quem sobrevive...
Não se trata de um argumento forte. Os críticos dizem que só dá para
saber quem é o mais apto depois que ele sobrevive. Mas: sabemos que é
possível um tipo de indivíduo ser mais abundante na espécie, mesmo se
não for o mais apto. Esse é um processo puramente aleatório, de
variação dos genótipos (seqüências de DNA) dentro das populações. É um
processo chamado deriva genética. E não é um processo de seleção
natural. Se você olhar para duas populações que começaram do mesmo
jeito, uma delas poderá acabar diferente, por puro acaso, como num
lance de dados. Isso elimina o argumento de que se trata de um
raciocínio circular. Além disso, é possível prever qual organismo se
sairá melhor num determinado ambiente. Em praticamente toda edição da
revista Evolution há um exemplo do tipo, onde pegamos uma
característica de um organismo, prevemos como ela pode ajudar a
sobrevivência em um determinado ambiente, e depois vemos que esse é
exatamente o caso. Não é preciso ser um gênio para entender que se há
dois tipos de bactéria, e um deles é capaz de digerir uma substância e
outro, não, se você colocá-los num ambiente com esse produto, um vai
ganhar e o outro vai perder. Isso é evolução por seleção natural, e
podemos prever seu resultado.
Também há quem diga que não é possível testar a evolução, para saber
se ela está certa ou errada.
Isso também é falso. Vamos pegar a questão da evolução no esquema mais
amplo, que é a proposição de que todos os organismos evoluíram, por
descendência com modificações, de um ancestral comum. Eu e as árvores
lá fora, e as bactérias em meu aparelho digestivo, todos viemos de uma
única forma de vida ancestral que deu origem a toda a variedade atual.
Isso ocorreu ao longo do tempo, a um ritmo determinado, é claro. Não
dá para tirar um mamífero de uma bactéria de uma hora para a outra,
deve haver passos intermediários. Então, entendemos que as formas de
vida mais recentes não podem ter ocorrido muito cedo na história da
evolução. Portanto, se você conseguisse encontrar fósseis de
mamíferos, indisputáveis, de 400 milhões de anos, isso causaria muita
dor e sofrimento, porque os biólogos diriam, não pode ser. Então, essa
é uma observação possível, um teste, que forçaria a uma revisão
completa da teoria da evolução.
O debate entre evolução e criacionismo, se evolução deve ser ensinada
nas escolas, se o criacionismo deveria ser ensinado por professores de
ciências, causa muita polarização, muita polêmica, desencadeia
discussões apaixonadas. A evolução parece ser o único tema, no
currículo de ciências, a provocar reações tão extremas. Por quê?
É precisamente porque as pessoas resistem muito à idéia de que
surgimos por meio de um processo puramente material, a partir de
outras formas de vida. É uma idéia que preocupa. É vista como uma
ameaça à dignidade humana, talvez. E também uma ameaça às crenças
religiosas, porque as crenças religiosas dizem que os seres humanos
são muito especiais, foram deliberadamente criados por um Criador
bondoso que se importa com elas. Enquanto que a explicação científica
para a origem dos seres humanos entra em conflito com esse ponto de
vista. Creio que é por isso que a evolução causa uma reação tão
emocional.
Mas essa ameaça é real? O sentimento humano de ser protegido por um
Criador onipotente está mesmo sob ameaça da teoria da evolução, ou se
trata de um mal-entendido?
Creio que é possível aceitar a evolução totalmente e, ao mesmo tempo,
preservar crenças religiosas e teológicas. E digo isso porque há
milhões de pessoas que fazem isso. Incluindo inúmeros cientistas, que
aceitam a religião, têm sentimentos religiosos, e aceitam as
evidências a favor da evolução, incluindo a evolução da espécie
humana. Um de meus melhores alunos de doutorado, que hoje é um biólogo
evolucionista muito produtivo, é católico devoto e praticante. O papa
anterior (João Paulo II) escreveu um documento dizendo que a evidência
a favor da evolução é tão forte que a teoria deveria ser aceita como
mais que pura especulação. No entanto, o papa disse que isso não
significa que existe uma explicação biológica para a parte mais íntima
do ser humano, a alma. Ele reserva uma parte para a religião. Creio
que muitos líderes religiosos, e muita gente religiosa, não têm
problema nenhum com a evolução. A Igreja Católica tem aceito a
evolução há muito tempo. No entanto, é claro que isso significa que há
certas afirmações específicas na Bíblia que não são literalmente
compatíveis com a evolução. Mas também não são compatíveis com física,
geologia, ou astronomia, ou nenhuma das outras ciências. Se você
acredita que o mundo foi criado em seis dias, ou se acredita que o
mundo foi criado há 100.000 anos, isso não é aceitável para
astrônomos, geólogos ou físicos. Você tem de estar preparado para
reinterpretar os textos religiosos, o que é exatamente o que os
teólogos fazem. Bons teólogos não acreditam que tudo que aparece
escrito nas versões em inglês, em português ou espanhol da Bíblia é
para ser tomado exatamente como verdade literal.
Mas as religiões pararam de perseguir astrônomos há séculos, enquanto
que professores de biologia ainda encontram problemas. A resistência
às novas verdades científicas que vêm da biologia é maior por quê...?
É por causa do conteúdo emocional, eu acho. As pessoas não se
preocupam muito se a física entra em conflito com a Bíblia, mas creio
que, porque são humanas, elas se preocupam com a biologia. Mas eu
gostaria de destacar que são apenas algumas lideranças religiosas, e
algumas pessoas religiosas, que condenam a evolução. Nos países onde a
maioria da população é católica, como Espanha, Portugal, ou na maior
parte da América Latina, não há conflito. O conflito surge onde há
versões fundamentalistas do cristianismo, que tomam a Bíblia
literalmente. Mas isso não é um problema entre as religiões maiores,
majoritárias. Há muitas pessoas que têm crenças religiosas e acreditam
na evolução, incluindo cientistas. Mas elas são cuidadosas em separar
uma coisa da outra. Elas defendem que há coisas que a ciência não deve
fazer, há lugares onde a ciência não deve entrar, por exemplo, na
questão dos valores, da ética, da moralidade, coisas sobre as quais a
ciência não tem nada de útil a dizer, e onde não deveria se meter.
Mas, em compensação, quando se tenta explicar o mundo natural, quando
se tenta explicar as coisas que acontecem na natureza, com animais,
plantas, rochas ou estrelas, ou átomos, a abordagem científica não
pode admitir a religião. É preciso separar e manter separado. Porque
quando se propõe que a ciência aceite explicações religiosas, aí você
tem idéias que não podem ser testadas. Ao postular que algo foi
causado por um ser sobrenatural, ninguém tem a menor idéia de como
determinar se essa é uma explicação verdadeira ou falsa. E se você
pode dizer que um ser sobrenatural é responsável por esse evento em
particular, por exemplo, a origem dos seres humanos, então você pode
dizer que ele é responsável por tudo, pelo terremoto que aconteceu na
China. Gostaríamos de parar de tentar entender os terremotos, porque
alguém disse que há uma causa sobrenatural? A ciência tem de se manter
materialista em suas explicações, o que não significa que a visão de
mundo do cientista tenha de ser materialista. O materialismo não cabe
quando o assunto é amor, ou ética, mas quando tentamos entender o
mundo natural, é essencial.
Mas há conflitos. A ciência pode informar as decisões morais. Para
tomar uma decisão sobre certo e errado, você precisa de fatos, e os
fatos têm de vir da ciência, do método científico.
Certamente. Mas não a decisão sobre o que é certo e errado. A ciência
pode descrever o que ocorre com o óvulo, da fertilização até o
nascimento, e pode dizer, talvez, quando o cérebro se forma, quando o
cérebro está pronto e descrever outros aspectos do desenvolvimento do
embrião, mas a ciência não pode lhe dizer se o aborto é moral ou
imoral.
O uso de células-tronco extraídas de embriões humanos em pesquisas
científicas causa muita polêmica no Brasil. O sr. acha que esse uso
deve ser autorizado?
Minha opinião pessoal quanto a isso não tem mais peso que a de
qualquer outra pessoa. Porque é só isso, a minha opinião. Se eu
responder a essa pergunta, será uma resposta baseada em meus valores
pessoais, não uma resposta científica. Eu sou um cientista, e não
posso fazer uma afirmação científica sobre esse assunto. Posso falar
sobre as conseqüências científicas de certas linhas de pesquisa. Posso
dizer que, se tal e tal pesquisa for feita... e eu não sou um
especialista em células-tronco, mas um biólogo com mais conhecimento
dessa área poderia dizer... que se as pesquisas forem feitas, tal e
tal tecnologia médica poderia se tornar viável . Mas esta seria uma
declaração científica, que não é a mesma coisa que uma declaração de
certo e errado. Certo e errado não pode ser uma afirmação científica.
Se o Brasil vier a viver uma radicalização como a que existe nos EUA
em torno do ensino da evolução e do criacionismo, qual seria seu
conselho aos cientistas e professores brasileiros?
Meu conselho seria que os cientistas venham a público, que tentem
educar a população sobre essas questões. Eles têm de tentar explicar a
diferença entre uma abordagem científica e uma abordagem não
científica. Eles têm de tentar explicar às pessoas que dependemos da
ciência para avanços tecnológicos com muitos resultados práticos. E
essas aplicações não podem ser mais fortes do que o entendimento
básico de ciência que temos a respeito do mundo natural. Os cientistas
tem de enfatizar que os benefícios da ciência só virão se ensinarmos
às pessoas como avaliar evidências. Em ciência, sempre que alguém faz
uma afirmação, a resposta é: qual a sua evidência? Em ciência, suas
afirmações são tão fortes quanto a evidência que se apresenta.
Portanto, não podemos admitir uma afirmação para a qual não ha
evidência concreta. É preciso que todos os cientistas tentem explicar
às pessoas qual é a natureza da ciência, e manter a ciência separada
da religião. Não para fazer pouco caso da religião. As pessoas têm sua
liberdade de crença religiosa, mas precisam entender que isso tem de
ficar do lado de fora da aula de ciências. Assim como a ciência deve
ficar fora dos ensinamentos das igrejas sobre moralidade. Creio,
ainda, que os cientistas devem fazer todo o esforço para contestar as
alegações feitas por criacionistas. Então, se houver algum
criacionista, algum defensor do design inteligente (movimento que
propõe que a vida é complexa demais para ter surgido por meios
estritamente naturais), alguma figura religiosa que vá à televisão
para fazer alegações falsas sobre a evolução, então os cientistas
devem procurar o canal de TV, a revista, ou o veículo que for, e
dizer, não, isso é errado, não é o que entendemos do ponto de vista
científico, e aqui está o que é correto, e eis o porquê. Meu outro
conselho seria: não crie uma oposição entre ciência e religião. Há
algumas pessoas no meu campo que são ateus bem agressivos. Você talvez
já tenha ouvido falar em Richard Dawkins (biólogo britânico que
defende a incompatibilidade entre ciência e religião. Seu livro mais
recente é Deus, um Delírio)?
O senhor acha que a participação de cientistas, principalmente
biólogos, em movimentos de difusão do ateísmo acaba prejudicando os
esforços em favor do ensino das ciências?
Creio que, provavelmente, sim. E a razão disso é: se você diz às
pessoas que elas devem escolher entre ciência e religião, que é
impossível ter os dois, então as pessoas vão escolher a religião. Por
quê? Porque traz mais satisfação emocional. Religião satisfaz
necessidades muito profundas de muita gente. Negar às pessoas o
conforto dessas crenças é muito contraproducente e, eu diria, muito
cruel. Minha mensagem para os cientistas, então, seria: reconheçam a
humanidade das pessoas. Tentem mostrar a elas que é possível conciliar
o ponto de vista científico com o religioso, em vez de criar uma
dualidade. Mas é claro que muitos religiosos, principalmente
evangélicos fundamentalistas, insistem nessa dualidade. Insistem que é
preciso escolher.
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