segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

'Ciência e religião não devem se misturar', diz Douglas Futuyma


No Brasil para palestras, Douglas Futuyma faz balanço dos avanços no 
estudo da evolução biológica
Carlos Orsi, do Estado de São Paulo

SÃO PAULO - Ciência e religião podem conviver, mas não devem se 
misturar. Essa é a receita que o biólogo americano Douglas Futuyma 
oferece para evitar conflitos como os que ocorrem nos EUA, em torno do 
ensino da teoria da evolução em escolas públicas. Futuyma é um 
veterano dessas batalhas, tendo sido presidente da Sociedade Americana 
para o Estudo da Evolução e editor da revista científica especializada 
Evolution. É autor, entre outros livros, de Science on Trial: The Case 
for Evolution (Ciência em Julgamento: O Caso em Favor da Evolução), 
sobre o embate entre o ensino da evolução e do criacionismo, e de 
Biologia Evolutiva, uma das principais obras usadas no ensino da 
evolução nos cursos universitários brasileiros de Biologia.

Futuyma está no Brasil nesta semana, para uma série de três palestras 
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a convite do programa 
de pós-graduação em Ecologia da instituição. A primeira delas, na 
terça-feira, foi "A Biologia Evolutiva, 150 anos após a publicação da 
Origem das Espécies". A desta quarta teve como assunto "Evolução e o 
Ataque à Ciência", sobre o duelo com os criacionistas, e nesta quinta-
feira o tema é "A Evolução de Associações entre Insetos e Plantas 
Hospedeiras".

A palestra de terça superlotou a sala de defesa de teses do Instituto 
de Biologia da universidade, com estudantes e professores em pé, junto 
às paredes e sentados nos corredores para ouvir o cientista fazer um 
balanço dos avanços no estudo da evolução biológica ao longo do último 
século, principalmente a partir da descoberta do código genético. "Os 
genomas não fazem sentido sem a vinculação com a evolução, e hoje 
também podemos estudar a influência dos genes na evolução das 
espécies", disse ele à platéia. Antes de iniciar a palestra, Futuyma 
falou à reportagem do 
estadao.com.br:

Como está a teoria da evolução hoje, 150 anos depois de sua formulação 
inicial?
Mais forte que nunca. Gostaria de começar dizendo algo sobre a palavra 
"teoria". Essa palavra é mal compreendida, nos EUA e, talvez, no 
Brasil também. Para muita gente, teoria é algo como uma idéia, um 
palpite. Em ciência, no entanto, usamos "teoria" de um modo diferente. 
Físicos falam em teoria quântica, teoria atômica, e não estão fazendo 
especulações vazias. Eles têm muita certeza daquilo que dizem. Em 
ciência, "teoria" significa um corpo de explicações que dá conta de 
uma ampla gama de observações, e forma um corpo de conhecimento muito 
forte. Nos últimos 150 anos, a teoria da evolução cresceu e acumulou 
evidências em seu favor. Por exemplo, no tempo de Darwin (Charles 
Darwin, autor de "A Origem das Espécies", primeira obra a expor a 
teoria da evolução, publicada em 1859) não sabíamos sobre DNA, sobre 
genes, não sabíamos como as características passavam dos pais para 
filhos. Agora, usamos DNA para entender melhor a evolução, e a 
evolução para entender melhor o funcionamento dos genes. Outro 
exemplo: Darwin sugeriu, em 1866, que humanos e chimpanzés vinham de 
um ancestral comum e agora sabemos, graças ao DNA, que ele estava 
certo, porque o DNA humano e dos chimpanzés coincide em mais de 90% .

Como o trabalho de Darwin se sustenta hoje? Muitas vezes, o fundador 
de um novo ramo da ciência acaba superado pelo avanço da própria 
ciência que ajudou a criar.
Comparado com outros fundadores, Darwin sobrevive muito bem. Claro que 
ele não era perfeito, cometeu erros e havia muita coisa que, 
simplesmente, não sabia. Mas é notável quantas das suas idéias, quanto 
de seus "insights", foram validados. Por exemplo: ele teve problemas 
em entender como insetos sociais, como abelhas e formigas, criam 
comunidades onde a maioria dos indivíduos trabalha, mas não se 
reproduz, já que a evolução prevê que os indivíduos que têm mais 
sucesso reprodutivo devem acabar dominando a espécie. Isso parecia um 
desafio à teoria da evolução. Ele teve a idéia de que alguns 
indivíduos poderiam se sacrificar em favor de outros de parentesco 
próximo, na mesma colônia. E hoje esta ainda é a principal explicação, 
com muita evidência a seu favor. Claro, ele estava errado em algumas 
coisas. Ele tentou criar uma teoria da hereditariedade que estava, 
simplesmente, errada. Mas ninguém é perfeito.

Críticos da evolução costumam dizer que a teoria é um raciocínio 
circular, já que afirma "a sobrevivência dos mais aptos", mas o único 
jeito de saber quem é mais apto é esperando para ver quem sobrevive...
Não se trata de um argumento forte. Os críticos dizem que só dá para 
saber quem é o mais apto depois que ele sobrevive. Mas: sabemos que é 
possível um tipo de indivíduo ser mais abundante na espécie, mesmo se 
não for o mais apto. Esse é um processo puramente aleatório, de 
variação dos genótipos (seqüências de DNA) dentro das populações. É um 
processo chamado deriva genética. E não é um processo de seleção 
natural. Se você olhar para duas populações que começaram do mesmo 
jeito, uma delas poderá acabar diferente, por puro acaso, como num 
lance de dados. Isso elimina o argumento de que se trata de um 
raciocínio circular. Além disso, é possível prever qual organismo se 
sairá melhor num determinado ambiente. Em praticamente toda edição da 
revista Evolution há um exemplo do tipo, onde pegamos uma 
característica de um organismo, prevemos como ela pode ajudar a 
sobrevivência em um determinado ambiente, e depois vemos que esse é 
exatamente o caso. Não é preciso ser um gênio para entender que se há 
dois tipos de bactéria, e um deles é capaz de digerir uma substância e 
outro, não, se você colocá-los num ambiente com esse produto, um vai 
ganhar e o outro vai perder. Isso é evolução por seleção natural, e 
podemos prever seu resultado.

Também há quem diga que não é possível testar a evolução, para saber 
se ela está certa ou errada.
Isso também é falso. Vamos pegar a questão da evolução no esquema mais 
amplo, que é a proposição de que todos os organismos evoluíram, por 
descendência com modificações, de um ancestral comum. Eu e as árvores 
lá fora, e as bactérias em meu aparelho digestivo, todos viemos de uma 
única forma de vida ancestral que deu origem a toda a variedade atual. 
Isso ocorreu ao longo do tempo, a um ritmo determinado, é claro. Não 
dá para tirar um mamífero de uma bactéria de uma hora para a outra, 
deve haver passos intermediários. Então, entendemos que as formas de 
vida mais recentes não podem ter ocorrido muito cedo na história da 
evolução. Portanto, se você conseguisse encontrar fósseis de 
mamíferos, indisputáveis, de 400 milhões de anos, isso causaria muita 
dor e sofrimento, porque os biólogos diriam, não pode ser. Então, essa 
é uma observação possível, um teste, que forçaria a uma revisão 
completa da teoria da evolução.

O debate entre evolução e criacionismo, se evolução deve ser ensinada 
nas escolas, se o criacionismo deveria ser ensinado por professores de 
ciências, causa muita polarização, muita polêmica, desencadeia 
discussões apaixonadas. A evolução parece ser o único tema, no 
currículo de ciências, a provocar reações tão extremas. Por quê?
É precisamente porque as pessoas resistem muito à idéia de que 
surgimos por meio de um processo puramente material, a partir de 
outras formas de vida. É uma idéia que preocupa. É vista como uma 
ameaça à dignidade humana, talvez. E também uma ameaça às crenças 
religiosas, porque as crenças religiosas dizem que os seres humanos 
são muito especiais, foram deliberadamente criados por um Criador 
bondoso que se importa com elas. Enquanto que a explicação científica 
para a origem dos seres humanos entra em conflito com esse ponto de 
vista. Creio que é por isso que a evolução causa uma reação tão 
emocional.

Mas essa ameaça é real? O sentimento humano de ser protegido por um 
Criador onipotente está mesmo sob ameaça da teoria da evolução, ou se 
trata de um mal-entendido?
Creio que é possível aceitar a evolução totalmente e, ao mesmo tempo, 
preservar crenças religiosas e teológicas. E digo isso porque há 
milhões de pessoas que fazem isso. Incluindo inúmeros cientistas, que 
aceitam a religião, têm sentimentos religiosos, e aceitam as 
evidências a favor da evolução, incluindo a evolução da espécie 
humana. Um de meus melhores alunos de doutorado, que hoje é um biólogo 
evolucionista muito produtivo, é católico devoto e praticante. O papa 
anterior (João Paulo II) escreveu um documento dizendo que a evidência 
a favor da evolução é tão forte que a teoria deveria ser aceita como 
mais que pura especulação. No entanto, o papa disse que isso não 
significa que existe uma explicação biológica para a parte mais íntima 
do ser humano, a alma. Ele reserva uma parte para a religião. Creio 
que muitos líderes religiosos, e muita gente religiosa, não têm 
problema nenhum com a evolução. A Igreja Católica tem aceito a 
evolução há muito tempo. No entanto, é claro que isso significa que há 
certas afirmações específicas na Bíblia que não são literalmente 
compatíveis com a evolução. Mas também não são compatíveis com física, 
geologia, ou astronomia, ou nenhuma das outras ciências. Se você 
acredita que o mundo foi criado em seis dias, ou se acredita que o 
mundo foi criado há 100.000 anos, isso não é aceitável para 
astrônomos, geólogos ou físicos. Você tem de estar preparado para 
reinterpretar os textos religiosos, o que é exatamente o que os 
teólogos fazem. Bons teólogos não acreditam que tudo que aparece 
escrito nas versões em inglês, em português ou espanhol da Bíblia é 
para ser tomado exatamente como verdade literal.

Mas as religiões pararam de perseguir astrônomos há séculos, enquanto 
que professores de biologia ainda encontram problemas. A resistência 
às novas verdades científicas que vêm da biologia é maior por quê...?
É por causa do conteúdo emocional, eu acho. As pessoas não se 
preocupam muito se a física entra em conflito com a Bíblia, mas creio 
que, porque são humanas, elas se preocupam com a biologia. Mas eu 
gostaria de destacar que são apenas algumas lideranças religiosas, e 
algumas pessoas religiosas, que condenam a evolução. Nos países onde a 
maioria da população é católica, como Espanha, Portugal, ou na maior 
parte da América Latina, não há conflito. O conflito surge onde há 
versões fundamentalistas do cristianismo, que tomam a Bíblia 
literalmente. Mas isso não é um problema entre as religiões maiores, 
majoritárias. Há muitas pessoas que têm crenças religiosas e acreditam 
na evolução, incluindo cientistas. Mas elas são cuidadosas em separar 
uma coisa da outra. Elas defendem que há coisas que a ciência não deve 
fazer, há lugares onde a ciência não deve entrar, por exemplo, na 
questão dos valores, da ética, da moralidade, coisas sobre as quais a 
ciência não tem nada de útil a dizer, e onde não deveria se meter. 
Mas, em compensação, quando se tenta explicar o mundo natural, quando 
se tenta explicar as coisas que acontecem na natureza, com animais, 
plantas, rochas ou estrelas, ou átomos, a abordagem científica não 
pode admitir a religião. É preciso separar e manter separado. Porque 
quando se propõe que a ciência aceite explicações religiosas, aí você 
tem idéias que não podem ser testadas. Ao postular que algo foi 
causado por um ser sobrenatural, ninguém tem a menor idéia de como 
determinar se essa é uma explicação verdadeira ou falsa. E se você 
pode dizer que um ser sobrenatural é responsável por esse evento em 
particular, por exemplo, a origem dos seres humanos, então você pode 
dizer que ele é responsável por tudo, pelo terremoto que aconteceu na 
China. Gostaríamos de parar de tentar entender os terremotos, porque 
alguém disse que há uma causa sobrenatural? A ciência tem de se manter 
materialista em suas explicações, o que não significa que a visão de 
mundo do cientista tenha de ser materialista. O materialismo não cabe 
quando o assunto é amor, ou ética, mas quando tentamos entender o 
mundo natural, é essencial.

Mas há conflitos. A ciência pode informar as decisões morais. Para 
tomar uma decisão sobre certo e errado, você precisa de fatos, e os 
fatos têm de vir da ciência, do método científico.
Certamente. Mas não a decisão sobre o que é certo e errado. A ciência 
pode descrever o que ocorre com o óvulo, da fertilização até o 
nascimento, e pode dizer, talvez, quando o cérebro se forma, quando o 
cérebro está pronto e descrever outros aspectos do desenvolvimento do 
embrião, mas a ciência não pode lhe dizer se o aborto é moral ou 
imoral.

O uso de células-tronco extraídas de embriões humanos em pesquisas 
científicas causa muita polêmica no Brasil. O sr. acha que esse uso 
deve ser autorizado?
Minha opinião pessoal quanto a isso não tem mais peso que a de 
qualquer outra pessoa. Porque é só isso, a minha opinião. Se eu 
responder a essa pergunta, será uma resposta baseada em meus valores 
pessoais, não uma resposta científica. Eu sou um cientista, e não 
posso fazer uma afirmação científica sobre esse assunto. Posso falar 
sobre as conseqüências científicas de certas linhas de pesquisa. Posso 
dizer que, se tal e tal pesquisa for feita... e eu não sou um 
especialista em células-tronco, mas um biólogo com mais conhecimento 
dessa área poderia dizer... que se as pesquisas forem feitas, tal e 
tal tecnologia médica poderia se tornar viável . Mas esta seria uma 
declaração científica, que não é a mesma coisa que uma declaração de 
certo e errado. Certo e errado não pode ser uma afirmação científica.

Se o Brasil vier a viver uma radicalização como a que existe nos EUA 
em torno do ensino da evolução e do criacionismo, qual seria seu 
conselho aos cientistas e professores brasileiros?
Meu conselho seria que os cientistas venham a público, que tentem 
educar a população sobre essas questões. Eles têm de tentar explicar a 
diferença entre uma abordagem científica e uma abordagem não 
científica. Eles têm de tentar explicar às pessoas que dependemos da 
ciência para avanços tecnológicos com muitos resultados práticos. E 
essas aplicações não podem ser mais fortes do que o entendimento 
básico de ciência que temos a respeito do mundo natural. Os cientistas 
tem de enfatizar que os benefícios da ciência só virão se ensinarmos 
às pessoas como avaliar evidências. Em ciência, sempre que alguém faz 
uma afirmação, a resposta é: qual a sua evidência? Em ciência, suas 
afirmações são tão fortes quanto a evidência que se apresenta. 
Portanto, não podemos admitir uma afirmação para a qual não ha 
evidência concreta. É preciso que todos os cientistas tentem explicar 
às pessoas qual é a natureza da ciência, e manter a ciência separada 
da religião. Não para fazer pouco caso da religião. As pessoas têm sua 
liberdade de crença religiosa, mas precisam entender que isso tem de 
ficar do lado de fora da aula de ciências. Assim como a ciência deve 
ficar fora dos ensinamentos das igrejas sobre moralidade. Creio, 
ainda, que os cientistas devem fazer todo o esforço para contestar as 
alegações feitas por criacionistas. Então, se houver algum 
criacionista, algum defensor do design inteligente (movimento que 
propõe que a vida é complexa demais para ter surgido por meios 
estritamente naturais), alguma figura religiosa que vá à televisão 
para fazer alegações falsas sobre a evolução, então os cientistas 
devem procurar o canal de TV, a revista, ou o veículo que for, e 
dizer, não, isso é errado, não é o que entendemos do ponto de vista 
científico, e aqui está o que é correto, e eis o porquê. Meu outro 
conselho seria: não crie uma oposição entre ciência e religião. Há 
algumas pessoas no meu campo que são ateus bem agressivos. Você talvez 
já tenha ouvido falar em Richard Dawkins (biólogo britânico que 
defende a incompatibilidade entre ciência e religião. Seu livro mais 
recente é Deus, um Delírio)?

O senhor acha que a participação de cientistas, principalmente 
biólogos, em movimentos de difusão do ateísmo acaba prejudicando os 
esforços em favor do ensino das ciências?
Creio que, provavelmente, sim. E a razão disso é: se você diz às 
pessoas que elas devem escolher entre ciência e religião, que é 
impossível ter os dois, então as pessoas vão escolher a religião. Por 
quê? Porque traz mais satisfação emocional. Religião satisfaz 
necessidades muito profundas de muita gente. Negar às pessoas o 
conforto dessas crenças é muito contraproducente e, eu diria, muito 
cruel. Minha mensagem para os cientistas, então, seria: reconheçam a 
humanidade das pessoas. Tentem mostrar a elas que é possível conciliar 
o ponto de vista científico com o religioso, em vez de criar uma 
dualidade. Mas é claro que muitos religiosos, principalmente 
evangélicos fundamentalistas, insistem nessa dualidade. Insistem que é 
preciso escolher.

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