O ESTADO DE S. PAULO, 12-02-2009
Cento e cinquenta anos após sua publicação, o Homo sapiens ainda tem
dificuldade em acreditar nas descobertas de Darwin. As ideias de
Darwin e Galileu sofrem da dificuldade do cérebro humano em aceitar
conceitos abstratos que se chocam com observações diretas dos
sentidos. Sabemos que a Terra gira ao redor do Sol e a cada dia
observamos o Sol cruzar o céu. Se tivéssemos incorporado a descoberta
de Galileu, observaríamos que na madrugada o horizonte desce, expondo
nossa casa à luz solar. Ao longo do dia, à medida que o horizonte
continua a descer, nossa cabeça aponta em direção ao Sol. Quando a
Terra completa meio giro e estamos de ponta-cabeça, o horizonte se
eleva e cobre o Sol que permanece imóvel. Apesar de esta ser uma
descrição mais precisa do que ocorre, nosso cérebro se recusa a "ver"
o desenrolar do dia desta maneira.
O motivo desta dificuldade é bem compreendido pelos darwinistas. Os
sistemas visuais surgiram faz centenas de milhões de anos. Eles foram
selecionados porque melhoram a sobrevivência dos animais, permitindo a
localização de alimentos e predadores. Ao longo de milhões de anos
esses sistemas se tornaram sofisticados e rápidos nas tarefas para as
quais foram selecionados. Eles permitem que nosso cérebro, observando
o movimento de uma presa (ou uma bola de futebol), seja capaz de
ajustar nosso movimento de modo a interceptá-la no momento seguinte.
Quando um jogador chuta a bola em direção à área, seu cérebro calculou
que o atacante estará lá para recebê-la nos próximos segundos.
Ao fazer o passe, o jogador se beneficia de um sistema visual que não
foi selecionado para jogar futebol. O sistema visual considera o corpo
que habita como ponto de referência. Para essa parte de nosso cérebro,
somos o centro do universo. Apesar de eficiente e rápido, nosso
sistema visual é péssimo quando se trata de imaginar movimentos de um
ponto de vista que não seja o nosso (por isso juízes de futebol têm
dificuldade de identificar um impedimento e nos atrapalhamos ao
explicar como a órbita da Lua e da Terra determinam as fases da Lua).
Essa "deficiência" de nosso cérebro explica parcialmente porque grande
parte da humanidade crê que o sol gira em torno da Terra.
Com o desenvolvimento do pensamento abstrato, nosso cérebro passou a
dispor de dois mecanismos para compreender o mundo. Um, primitivo,
baseado nas informações dos sentidos; outro, capaz de entender o mundo
de forma analítica. Foi utilizando sua capacidade analítica e de
abstração que Galileu descobriu que a imagem produzida por nosso
sistema visual é parcial e distorcida. A Terra não é plana, o Sol não
gira em torno de nós e não somos o centro do Universo. Apesar de nossa
mente racional "entender" as descobertas de Galileu, nosso cérebro
insiste em nos informar que o Sol "sobe" detrás da montanha e
"caminha" em direção ao céu. Algumas pessoas, tentadas por nosso
cérebro animal, ainda suspeitam ser o centro do Universo.
Com a teoria da evolução de Darwin ocorre fenômeno semelhante. Desde
que os cérebros e os sistemas visuais surgiram, eles têm observado
outros seres vivos. E o que os olhos observam é que os seres vivos se
comportam como se fossem guiados por uma vontade interna ou um plano
de ação com objetivos definidos. As plantas crescem em direção ao Sol,
as raízes buscam água. Aves constroem ninhos e alimentam filhotes com
sementes que amadurecem quando eclodem os ovos. Nosso sistema visual
nos informa que todo ser vivo segue um plano e cada parte desse plano
parece ser um dos elementos de um projeto maior. É fácil imaginar como
nosso cérebro criou o conceito de um ser superior.
Mas nossa mente também é capaz de pensar de maneira abstrata e Darwin
observou os seres vivos de outra perspectiva. A ênfase é a transmissão
das características de uma geração para a próxima, a competição por
alimentos e a diversidade de seres vivos associada a cada ambiente.
Observado o mundo sob esta nova perspectiva, Darwin evolui na ausência
de um plano mestre. A transmissão das características herdadas, o
acaso produzindo a diversidade e um processo de seleção que só permite
a sobrevivência dos mais adaptados para cada ambiente é suficiente
para explicar a evolução dos seres vivos. Por trás da ordem aparente
está um processo randômico guiado pela seleção natural. Uma visão que
contrasta com o que informa nossos sentidos.
Do mesmo modo como nosso cérebro animal se recusa a acreditar que o
horizonte se abaixa todas as manhãs temos uma enorme dificuldade em
aceitar a inexistência de um plano ou projeto que organize a vida no
planeta. Vale o velho ditado, "o que os olhos não veem, o coração não
sente" e a mente não aceita.
Este comportamento primitivo do nosso cérebro é semelhante a outras
reações que herdamos de nossos ancestrais, como o medo hereditário do
escuro e das cobras. Hoje sabemos que o cérebro que habita nosso
crânio foi selecionado durante milhões de anos para garantir nossa
sobrevivência nas florestas e, apesar de recentemente ter se tornado
capaz de dominar a escrita, a fala, e o pensamento abstrato, nele
ainda sobrevivem características que eram essenciais para nossos
ancestrais.
A beleza da descoberta de Charles Darwin é que além de explicar a
evolução da vida no planeta, ela permite que investiguemos nossa
natureza animal. Isso significa aceitar que somos o produto de um
processo evolutivo complexo e que ainda carregamos conosco grande
parte do nosso passado. Aos poucos, ao longo das últimas décadas,
estamos identificando essas características primitivas. Talvez,
gradualmente, sejamos capazes de aprender a conviver e desfrutar
dessas habilidades do mesmo modo como um jogador de futebol se
aproveita do sistema visual desenvolvido quando habitávamos as
planícies africanas. Este autoconhecimento biológico talvez seja nossa
única chance de controlar nosso instinto predador e postergar a
extinção do Homo sapiens.
*Biólogo - fernando@reinach.com
http://www.estadao.com.br/
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